sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Como alguém pode ser contra a "Comissão da Verdade", com um nome desses?


A novilíngua Orwelliana encontrou porto seguro na nova casta política brasileira. Primeiro algumas notícias:

 A notícia na Folha Online de 07/01/2010, com o discurso populista do deputado, que confunde um ideal de Justiça com o revanchismo que vemos na prática:
A Comissão de Direitos Humanos divulgou nesta quinta-feira nota defendendo a criação da Comissão da Verdade, criada no Plano Nacional de Direitos Humanos com objetivo de apurar torturas e desaparecimentos durante o regime militar (1964-1985).

A nota, assinada pelo presidente em exercício da comissão, o deputado Pedro Wilson (PT-GO), lembra que a mesma proposta foi feita em outros países. "A Justiça não pode prescindir da verdade histórica e da necessidade de apurar as responsabilidades por crimes e violações de direitos cometidas contra quem ousou enfrentar um regime autocrático", afirma o deputado na nota.
...
Para Jobim e para os representantes das Forças Armadas, a comissão especial teria o objetivo de revogar a Lei de Anistia de 1979, além de ter um sentido revanchista, ao prever a identificação de locais onde teriam ocorrido abusos --incluindo instalações militares-- e não se concentrar em violações de direitos humanos feitas por grupos armados de oposição ao regime militar.
A reação, divulgada pelo Estadão em 30/12/2009:
Jobim foi surpreendido com um texto sem referências aos grupos da esquerda armada. Os militares dizem que se essas investigações vão ficar a cargo de uma Comissão da Verdade, então todos os fatos referentes ao regime militar devem ser investigados.

"Se querem por coronel e general no banco dos réus, então também vamos botar a Dilma e o Franklin Martins", disse um general da ativa ao Estado, referindo-se à ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, e ao ministro de Comunicação de Governo, que participaram da luta armada. "Não me venham falar em processo para militar pois a maioria nem está mais nos quartéis de hoje", acrescentou o general.
Dois pontos interessantes são levantados nessa reportagem do Estadão de 21/12/2009 (material da BBC Brasil), o da transparência e a importantíssima distinção entre uma Comissão da Verdade (o conceito genérico) e essa que se propõe:
Apesar de ser uma antiga demanda das famílias das vítimas do regime militar, a Comissão da Verdade nos moldes propostos pelo governo Lula é vista com desconfiança por algumas entidades de defesa dos direitos humanos, como o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil) e o grupo Tortura Nunca Mais. A representante no Brasil do Cejil, Beatriz Affonso, diz que uma Comissão da Verdade, em qualquer país, só tem um papel efetivo quando atende a determinados princípios.
(...)
"Só daremos um passo definitivo nesse processo quando o governo colocar seus próprios documentos à disposição. E isso deve ser feito pela Comissão da Verdade", diz Beatriz. Segundo ela, o governo tem tido uma postura "contraditória" ao lidar com o tema de direitos humanos, principalmente no que diz respeito ao regime militar. "O mesmo governo que propõe a Comissão da Verdade também pede à Corte da OEA o arquivamento da ação sobre a Guerrilha do Araguaia", diz Beatriz. "O Brasil reconhece a responsabilidade internamente, mas não o faz na arena internacional", acrescenta.
Presidente da OAB Cezar Britto põe no mesmo saco a abertura dos arquivos - abertura que, aproveito aqui para dizer, concordo plenamente - com a revisão unilateral da anistia em notícia no Estadão de 30/12/2009:
A OAB defende no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Superior Tribunal Militar (STM) ações reivindicando a abertura dos arquivos da ditadura e a punição aos torturadores. "O Brasil não pode se acovardar e querer esconder a verdade; anistia não é amnésia. É preciso conhecer a história para corrigir erros e ressaltar acertos: o povo que não conhece seu passado, a sua história, certamente pode voltar a viver tempos tenebrosos e de triste memória como tempos idos e não muito distantes".
O deputado José Genoíno tem a dignidade de distinguir o acesso à informação com o uso que se faz dela (que inclusive me lembra o polêmico artigo de Lawrence Lessig sobre transparência pública) :
Uma das vítimas do regime militar, o ex-guerrilheiro e deputado José Genoino (PT-SP) evita entrar na polêmica. Cauteloso, ele argumentou que cabe à Justiça, e não ao Congresso, debater e discutir a lei. "O direito à memória e à verdade não significa o julgamento de ninguém", disse o parlamentar.
A Economist também comenta o impasse em um artigo entitulado "Não olhe prá trás", de 7/1/2010:
Membros do alto escalão do PT, partido do presidente Lula, pertenceram a grupos guerrilheiros nos anos 70, e vários foram presos e torturados. Um deles é Paulo Vannuchi, secretário dos direitos humanos. Ele propôs a comissão da verdade, e também tenta obter os arquivos do regime militar. O ministro da Defesa tem se oposto a ele, dizendo que muitos arquivos foram queimados ou perdidos. O governo rodou uma campanha publicitária não apenas procurando informações sobre o paradeiro dos desaparecidos, mas também chamando as guerrilhas comunistas que operaram na Amazônia de "heróis", e descrevendo a ditadura como "o Brasil onde sonhar era proibido".
A Comissão da Verdade é parte de uma peça ideológica maior, o Plano Nacional de Direitos Humanos (e quem pode ser contra os direitos humanos?), como mostra notícia da Folha Online de 7/1/2010:
A presidente da CNA, senadora Kátia Abreu (DEM-TO), acusou o governo de elaborar um plano ideológico contra o agronegócio em um texto com "plataforma socialista" do governo federal. "Eu vejo uma parte deste governo que têm tendência bastante radical, ideológica, de esquerda extrema. Isso é uma plataforma socialista de governo, uma tentativa explícita de segregação do nosso setor, de preconceito abusivo", disse Abreu.

A senadora disse que um dos anexos do plano afirma que o agronegócio "não tem preocupação nem compromisso com os direitos humanos dos pequenos e médios agricultores, e das populações rurais". O setor também não teria preocupação com os direitos trabalhistas dos trabalhadores rurais, de acordo com a senadora. Kátia Abreu disse que o plano também estimula a realização de audiências públicas para discutir a reintegração de posse de terras invadidas mesmo em casos onde houver decisão judicial para a retirada dos invasores.
E agora, alguns comentários. Texto de Reinaldo Azevedo de 31/12/2009, ajudando a entender por que a Comissão, como está formada, não pode ser tão justa quanto parece:
Os militares aceitaram a criação da tal comissão desde que o texto não restringisse a apuração de violações ao governo militar: também as organizações terroristas de esquerda teriam sua atuação devidamente deslindada.

É preciso dizer com clareza, não? Dilma Rousseff pertenceu a uma organização terrorista, homicida mesmo: a Vanguarda Popular Revolucionária. Franklin Martins também praticou terrorismo. O seu MR-8 seqüestrava e matava. Vanucchi foi da Ação Libertadora Nacional, o que significa dizer que era um servo do Manual da Guerrilha, de Carlos Marighella, um verdadeiro manual de… terrorismo, que pregava até ataques a hospitais e dizia por que os bravos militantes deviam matar os soldados.

Pois bem… Quiseram os fatos que estes três se juntassem, com o conhecimento de Tarso Genro, para redigir - alguém redigiu a estrovenga; falo de aliança política -,  aquele decreto. E o combinado com os militares não foi cumprido: além de especificar que a Comissão da Verdade investigaria apenas um lado da batalha,  há propostas singelas como estas:
- determina que as leis aprovadas entre 1964 e 1985 sejam simplesmente revogadas caso se considere que elas atentam contra a tal “verdade”;
- determina que os logradouros públicos e monumentos que tenham sido batizados com nome de pessoas ligada ao “regime” sejam rebatizados.

Vocês entenderam direito: Lula assinou um decreto que não só dá um pé no traseiro do alto comando como, ainda, anuncia, na prática, a EXTINÇÃO DA LEI DA ANISTIA - para um dos lados, é óbvio. É isto: eles tentaram rever a tal lei.
Editorial do Estadão de 6/1/2010:
(...) Decerto ele fará o mesmo em relação a outro problema relacionado aos militares, no qual também meteu os pés pelas mãos. Trata-se do decreto que cria o Programa Nacional de Direitos Humanos ? e que ele admitiu ter assinado sem ler. Contrariando um acordo arduamente negociado entre a Defesa, as Três Forças e o Ministério da Justiça, endossado por Lula, o texto abre caminho para a revisão da Lei de Anistia, a partir das ações de uma Comissão da Verdade que já está sendo equiparada a uma "CPI da ditadura". Este é o presidente cujos adoradores não sabem nem querem saber como se conduz.
Opinião de José Nêumanne no Estadão do dia 6/1/2010:
Já que o secretário de Direitos Humanos da Presidência da República, Paulo Vannuchi, está tão interessado em investigar a violação de direitos humanos pela ditadura militar que provocou uma crise interna no governo federal por propor a tal Comissão Nacional da Verdade, talvez fosse útil esclarecer algumas meias-verdades, que também são meias-mentiras, a respeito desse delicado assunto. A primeira delas é a motivação da iniciativa: conforme o proponente e seu patrono na Esplanada dos Ministérios, Tarso Genro, ministro da Justiça, não há intenção de ofender os militares nem de revogar a Lei da Anistia, que extinguiu os crimes políticos eventualmente cometidos na vigência do regime de exceção. A dificuldade para quem (como o autor destas linhas) não é fluente na algaravia ideológica de ambos é compreender como o dito cujo texto será blindado se ele vige desde 1979 e a proposta é revogar as leis que possam ter permitido tais violações entre 1964 e 1985.
(...)
Convicta de que a História é escrita por vencedores, em detrimento dos vencidos, o que justificaria até os atos bestiais de Hitler e Mussolini, por exemplo, a esquerda quer reescrever a ata deste nosso tempo porque perdeu a guerra suja, mas subiu ao poder. Ainda que não tenha êxito no Parlamento, pois, ao que parece, senadores e deputados não estão muito dispostos a remexer no lixo dos porões da ditadura, os patronos da Comissão Nacional da Verdade já conseguiram algumas conquistas. A primeira delas foi expor os atuais comandantes militares à humilhação pública de serem forçados a devolver seus cargos ao presidente. A segunda será refinar outro combustível para anabolizar a crescente popularidade de Lula, que poderá ostentar a láurea de "vingador dos torturados".

E a maior de todas será elevar ao panteão dos heróis da democracia militantes que não arriscavam a pele pela liberdade, mas por sua forma favorita de tirania. Se conseguir ungir tal mentira como verdade, a proposta terá prestado um imenso desserviço à história e à democracia.
Opinião de Demétrio Magnioli no Estadão de 7/1/2010 (ele também observa que os dois lados não eram simétricos mais adiante no artigo):
Não é exato dizer que as "vítimas de ontem" são os "vitoriosos de hoje". Elas fazem parte do condomínio que está no poder, mas à custa de uma dupla renúncia. Em primeiro lugar, renunciaram ao seu programa original, que persiste apenas na esfera simbólica e se manifesta iconicamente em eventos como o da premiação de Frei Betto. Em segundo lugar, renunciaram aos seus princípios políticos e se associaram aos "vitoriosos de ontem", que formam um componente crucial da base governista. Eis o motivo pelo qual Vannuchi não terá a "verdade" que almeja no fim da negociação em curso.

Justiça e verdade não são a mesma coisa. A primeira depende das leis vigentes e se coagula na decisão, certa ou errada, de um tribunal superior. A segunda é uma leitura do passado, uma narrativa mais ou menos amparada nos fatos, que se condensa como consenso circunstancial, sempre sujeito a revisão. Sancionada pelo último general-presidente no outono da ditadura militar, a Lei da Anistia tinha os intuitos simultâneos de impedir a produção da justiça e promover um equilíbrio entre duas verdades conflitantes. Na versão formulada por Vannuchi, a Comissão da Verdade pretende unicamente consagrar a verdade dos autodeclarados "vitoriosos de hoje".
Opinião do general Luiz Eduardo Rocha Paiva no Estadão em 8/1/2010:
Enquanto o Ministério da Justiça e a Secretaria Especial de Direitos Humanos se ocupam do passado, o Brasil é denunciado pela ONU, no presente, pelo desrespeito aos direitos humanos por agentes do Estado. Em duas décadas de democracia plena houve mais vítimas pela omissão ou violência do Estado, legítima ou não, e por criminosos do que no regime militar. Entre elas estão cidadãos honestos e suas famílias, massacrados por quadrilhas ante a inépcia do Estado; vítimas em episódios como os do Carandiru, de Eldorado de Carajás e das zonas urbanas periféricas; e seres humanos em presídios e centros de recuperação de menores onde são tratados como escória. Ao contrário de muitos envolvidos na luta armada, essas vítimas não são das classes favorecidas, não têm "sobrenome", não defendem a ideologia marxista e, assim, não contam com a solidariedade da hipócrita esquerda radical nem são indenizados pelas violações sofridas.

É inconcebível abandonar irmãos de armas ante a injustiça que correm o risco de sofrer, pois caberia a quem estivesse no lugar deles a missão que cumpriram nos anos 70. Por outro lado, é hipocrisia a condenação de governos nos quais tenham ocorrido excessos na reação à luta armada, por outros governos que financiam, apoiam e confraternizam com o MST, cujas ações resultam, impunemente, em ameaças, invasões, destruições e mortes; que idolatram regimes totalitários e lideranças ditatoriais criminosas como as de Cuba e do Irã; e ainda pagam indenizações milionárias a assassinos, sequestradores e terroristas anistiados e suas famílias, mas não às vítimas de seus crimes.
Artigo de Fernando De Barros E Silva na Folha em 6/1/2010:
Há, em relação aos crimes cometidos pela ditadura brasileira, pelo menos duas grandes questões em jogo. A primeira diz respeito ao conhecimento da verdade sobre o período. A segunda envolve a possibilidade de julgamento e punição dos agentes do Estado, civis ou militares, responsáveis por torturas e assassinatos. São questões distintas, embora relacionadas, que voltam à tona nos debates suscitados pela proposta do governo de criar a Comissão da Verdade.

Saber quando, onde e como morreram e qual o paradeiro dos que foram assassinados pela ditadura é um direito inalienável das famílias. Não há justificativa para que o Estado democrático se furte ao dever de esclarecer essas circunstâncias.
(...)
Saber exatamente o que cada um dos dois [Serra e Dilma, atingidos pela ditadura] pensa sobre o assunto talvez seja útil enquanto observamos a Comissão da Verdade cozinhar em fogo brando no caldeirão do Lula.
Hélio Schwartsman em artigo na Folha de 07/01/2010, parece estar falando de alguma outra Comissão, e não essa engendrada e levada a cabo por terroristas, que não tem como Norte moral a verdade, e sim punição:

Criar uma comissão do governo (de qualquer governo) para apurar a verdade é meio caminho para o engodo. Ainda assim, considero oportuna e necessária a Comissão da Verdade proposta pela atual administração com o objetivo de passar a limpo os crimes cometidos por representantes do Estado durante a ditadura militar. Existem famílias que ainda não sabem o que ocorreu com seus parentes desaparecidos. De resto, a população como um todo não pode ser privada do que podemos chamar de direito à verdade histórica.
Apesar do seu aviso, ele compra bem rápido a versão oficial do governo. Ele segue afirmando que as duas forças combatentes não são comparáveis (um grupo era de civis e o outro usava o poder do Estado, o que é verdade), e que portanto nenhuma simetria precisa ser respeitada (também concordo, mas devemos ao menos reconhecer que existem dois lados). Ele está livre, então, para atacar unilateralmente os militares (esse é o non sequitur) e mais, usar falácias silogísticas ao concluir que essa Comissão é justificada pelo direito à verdade. E sim, eu avalio um texto tanto pelo que está escrito como pelo que deveria estar. As omissões do que propõe na prática a Comissão, seus idealizadores e implicações me dizem mais sobre o texto do Hélio do que sua defesa de uma comissão idealizada (que creio, não seja a mesma definida nesse Programa Nacional dos Direitos Humanos). Sem falar na sua interpretação pedestre da carta Magna.

Enfim, o que eu queria organizar aqui é que há várias questões, que serão meticulosamente confundidas, sobre uma comissão da verdade: o direito à informação (a "abertura dos porões da ditadura"), como e por quem essa pesquisa  será feita (por criminosos, mesmo que anistiados, é que não deve ser), como essa informação será usada (indenização sim; vingança, nunca; implicações jurídicas eu não sei) e como é essa particular implementação que temos aí. Eu considero canalhice por exemplo (além de non sequitur), dizer que quem é contra essa Comissão da Verdade na verdade é contra o direito à informação.

PS: Vejo que já estão usando a falácia de associação para quem se opõe às 70 páginas de decreto que compõem o PNDH, que podemos chamar de "bolivarianinha".



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