sábado, 2 de fevereiro de 2008

Trânsito e castigo: o medo funciona

Texto de Carlos Alberto Sardenberg, publicado em O Globo (31 de janeiro de 2008):

O motorista vai pegar estrada e, assim, dispensa o copo de vinho no almoço. Por que faz isso?

1. porque é um cidadão educado e responsável
2. porque não encontrou a bebida no restaurante
3. porque a multa é caríssima
4. porque a multa é pesada e muito grande a possibilidade do infrator ser apanhado.

A cada resposta corresponderá um tipo de política pública com o objetivo de reduzir o espantoso número de mortes nas estradas brasileiras.
Para o pessoal da resposta 1, idealistas, digamos, a política será baseada numa campanha de educação. Para as respostas 2 e 3, saem medidas como as que vêm sendo tomadas por aqui, a elevação do valor da multa e a proibição da venda de bebidas em restaurantes e bares à beira das estradas.
Mas é a alternativa 4 – realista- que se pode chamar de resposta certa. Explica a maior parte do comportamento e é a base de políticas bem sucedidas pelo mundo afora: multa pesada, alta probabilidade de ser apanhado e baixíssima probabilidade de, uma vez apanhado, escapar da punição.
A experiência internacional tem mostrado que a multa nem precisa ser muito alta. É necessário que represente uma despesa efetiva, mas o mais importante é a probabilidade do sujeito ser apanhado. Como no caso da criminalidade em geral: os índices caem nos locais onde é maior a proporção de crimes desvendados e culpados efetivamente punidos.
O problema é que se trata da política mais difícil de implementar e a que causa mais reações da população.
Radares são eficientes no combate ao excesso de velocidade. Multar, anotar pontos na carteira de motorista e cassá-la quando estoura o limite constituem medidas inibidoras. Portanto, o Código de Trânsito brasileiro é eficiente, certo?
Errado.
E não precisa nem falar de corrupção. Em toda parte, políticos populistas assumem o discurso da “indústria das multas” e propõem anistias amplas, que rendem tantos votos hoje quantas mortes amanhã. Mas, para estas, sempre se podem encontrar outros responsáveis.
Na verdade, o pessoal vai mais longe. Em Santa Catarina, por exemplo, além de aprovar anistias, a Assembléia Legislativa votou lei que simplesmente proíbe a instalação de radares nas rodovias estaduais. E agora, estão instituindo a lei que proíbe a venda de bebidas nos bares à beira das estradas.
Equívoco total. Não tem a menor chance de funcionar, nem lá nem no Brasil. Digamos que ajuda um pouco. O bebedor acidental até pode desistir. Pede um vinho - não tem?, não pode? - tudo bem, não vai se dar ao trabalho de procurar. Mas o motorista que bebe com frequência certamente vai arrumar um meio de providenciar a cachaça. Leva no isopor ou encontra um bar amigo para fornecer.
Não se a Polícia Rodoviária impuser uma severa fiscalização nos bares e restaurantes, é o que se diz.
Sejamos realistas. Já viram a quantidade de bares e restaurantes? Para que a fiscalização fosse efetiva, seria preciso mobilizar, em caráter permanente, um enorme contingente de agentes. Esse pessoal não está disponível e, se estivesse, teria coisas mais úteis a fazer, como aplicar o teste do bafômetro em uma tal frequência que deixasse todo motorista com medo de ser apanhado e punido na justiça, sem chance de escapar.
Bafômetros também são caros? Cobrem das companhias de bebidas. A cada tantas garrafas vendidas, um bafômetro doado à polícia. (Preocupadas com a chamada responsabilidade social e com receio de proibições, pode apostar que as principais companhias topariam essas e outras medidas na mesma direção).
Mas o pessoal vai protestar, vai dizer que é uma arbitrariedade o policial exigir o teste do bafômetro, os inocentes de boa fé vão reclamar do transtorno e de terem sido considerados suspeitos.
Isso é confusão na certa hoje, para uma política que gera resultados a médio e longo prazo. E resultados que serão estatísticas.
Melhor, portanto, anunciar um severo pacote, implacável: vamos dobrar o valor das multas, vamos proibir a venda de álcool. Dá notícia e pronto.
Em tempo: privatizar estradas também é boa providência. Qualquer que seja o estado do motorista, a estrada ruim é uma ameaça. E tanto maior quanto pior seja o estado do motorista. As estatísticas mostram que há menos acidentes nas vias privatizadas.
Observação minha: no site do Carlos Alberto Sardenberg há vários outros artigos importantes, incluindo um comentário magistral sobre o episódio do embargo europeu à carne brasileira.

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